sábado, maio 30, 2020

ARTE
de fazer colares e contas

O fio vai colecionando contas
coloridas, sonoras, ásperas, lisas
Contas do tempo que não se deixa medir
mas que numa certa hora,
conta.

Conta uma história rara que não está
em nenhum livro ou nas pinturas das salas
Também não se ouvem nas teclas do piano de pinho brocado,
Não enfeitam pescoço algum.
Contas que somam uma vida.

A vida por um fio
que um dia terá unido uma ponta a outra
esvaziando o carretel,
como um velha senhora pegando a mão
da criança mais próxima.
Um raro colar pendurado no tempo,
enfeitando histórias
que juntaram contas
no fio de duas pontas
em um
eu

domingo, maio 24, 2020

Meu chão

O assoalho de madeira dominou toda a paisagem do meu sonho como se fosse saltar dos olhos pisando nele. 
Zonza, percebi que era o chão da minha infância. Casa.  
Cadê a mãe, o pai, o irmão, a vó, tias, vizinhos?   
Esfreguei os olhos e só via chão mas percebi que todos estavam em algum canto da casa tomando cuba libre, jogando pôquer, buraco, bobes no cabelo, quebrando o pescoço da galinha que vai ser afogada no molho pardo, perto da porta com arruda e Comigo-ninguém-pode ao lado do copo virgem com água, alho e carvão. 
Molduras com retratos, retratos e mais retratos que são eternos como as manchas coloridas no avental branco na beira do fogão e as bonecas nuas de cabelos tesourados em meio as bolas de gude rolando e pipas no papel de seda e cerol.
Lá num outro canto da casa, a oficina de trabalho descansa até seguirem para o armarinho de meus pais junto com os pompons de lã, botões e cintos a serem forrados com tecidos floridos, secando na cola de michelim mastigada às escondidas pelos meus dois anos, até a segunda-feira, quando o trabalho continua. 
Música passando nos domingos pelas janelas e portas do entra e sai das gentes amigas chegadas da feira na Rocinha com queijos coalho, manteiga e temperos nordestinos refletidos na tela da televisão cheia filmes musicais com piscinas e sereias além dos duelos de arma no deserto e roupas imundas com torcida garantida. 
    Os retângulos mesclados do chão voltam a chamar minha atenção: ninguém vem rezar comigo na beira da cama nem contar histórias para um sono que nunca tenho e a sensação de solidão, mesmo no meio de tanta festa vai subindo em mim junto com as estrelas. 
Os tacos começam a sumir e sei que só os verei quando acordar as lembranças ou num outro sonho cheio de odores e sons. 
Quando tudo desembaça, sinto o gosto do hálito dormido e da lágrima correndo na face me acordando de vez. 
Desperto sem saber nem querer estar onde estou. A visita daquele assoalho amarelado cheio de arranhões que conheço de cor é mais um decalque no álbum dos guardados da minha lembrança.
 Acordei nos olhos e continuo a achar o despertar do sono algo tão difícil quanto adormecer. Diariamente muito difícil.