domingo, maio 24, 2020

Meu chão

O assoalho de madeira dominou toda a paisagem do meu sonho como se fosse saltar dos olhos pisando nele. 
Zonza, percebi que era o chão da minha infância. Casa.  
Cadê a mãe, o pai, o irmão, a vó, tias, vizinhos?   
Esfreguei os olhos e só via chão mas percebi que todos estavam em algum canto da casa tomando cuba libre, jogando pôquer, buraco, bobes no cabelo, quebrando o pescoço da galinha que vai ser afogada no molho pardo, perto da porta com arruda e Comigo-ninguém-pode ao lado do copo virgem com água, alho e carvão. 
Molduras com retratos, retratos e mais retratos que são eternos como as manchas coloridas no avental branco na beira do fogão e as bonecas nuas de cabelos tesourados em meio as bolas de gude rolando e pipas no papel de seda e cerol.
Lá num outro canto da casa, a oficina de trabalho descansa até seguirem para o armarinho de meus pais junto com os pompons de lã, botões e cintos a serem forrados com tecidos floridos, secando na cola de michelim mastigada às escondidas pelos meus dois anos, até a segunda-feira, quando o trabalho continua. 
Música passando nos domingos pelas janelas e portas do entra e sai das gentes amigas chegadas da feira na Rocinha com queijos coalho, manteiga e temperos nordestinos refletidos na tela da televisão cheia filmes musicais com piscinas e sereias além dos duelos de arma no deserto e roupas imundas com torcida garantida. 
    Os retângulos mesclados do chão voltam a chamar minha atenção: ninguém vem rezar comigo na beira da cama nem contar histórias para um sono que nunca tenho e a sensação de solidão, mesmo no meio de tanta festa vai subindo em mim junto com as estrelas. 
Os tacos começam a sumir e sei que só os verei quando acordar as lembranças ou num outro sonho cheio de odores e sons. 
Quando tudo desembaça, sinto o gosto do hálito dormido e da lágrima correndo na face me acordando de vez. 
Desperto sem saber nem querer estar onde estou. A visita daquele assoalho amarelado cheio de arranhões que conheço de cor é mais um decalque no álbum dos guardados da minha lembrança.
 Acordei nos olhos e continuo a achar o despertar do sono algo tão difícil quanto adormecer. Diariamente muito difícil.